Ilhas do mar

segunda-feira, abril 24, 2006

25 de Abril

As Portas Que Abril Abriu

Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais feliz
dos povos à beira-terra

Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza


Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raíz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro
estragado
pelo dobrar da cerviz
que nos tempos do pasado
se chamava este país
Portugal suicídado
................................
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena
..................................
E se essee poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
.................................
Contra tudo o que era valho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideias
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.
.................................
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que segui
o que história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e prais claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viesses ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
e ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que os capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
Lisboa, Julho-Agosto de 1975
José Carlos Ari dos Santos - "Obra poética"





7 Comments:

  • Serei a primeira...

    Engraçado... nos esbarramos em meu blog e eu cantava justamente a música cuja letra me deixaste de presente...

    De devolvo a gentileza, na versão original. Essa que foi impedida de ser ouvida no Brasil da ditadura.

    Essa data é estanhamente comemorada e por vezes quase que silenciosamente, por todos que de certo modo, sabem o gosto cruel'que é viver em um país onde a ditadura impera. Vê-la desfeita, é uma vitória comemorada por todos que possuem entendimento do valor da vida e dos direitos de escolha, de ir e vir e da liberdade responsável.

    Um lindo 25 de Abril para ti e para todos os portugueses, com a versão original do Chico!!!

    Beijos!!!

    ò,ó


    Tanto mar
    Chico Buarque
    (primeira versão)*

    Sei que estás em festa, pá
    Fico contente
    E enquanto estou ausente
    Guarda um cravo para mim

    Eu queria estar na festa, pá
    Com a tua gente
    E colher pessoalmente
    Uma flor do teu jardim

    Sei que há léguas a nos separar
    Tanto mar, tanto mar
    Sei também quanto é preciso, pá
    Navegar, navegar

    Lá faz primavera, pá
    Cá estou doente
    Manda urgentemente
    Algum cheirinho de alecrim

    * Letra original,vetada pela censura no Brasil da ditadura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.

    By Blogger Lâmina d'Água & Silêncio, at 11:36 da manhã  

  • Lâmina d'água

    Era tão bom que fosse a 1º versão dessa linda canção.

    A revolução durou poucos instantes, rápidamente a burguesia que tinha fugido para o Brasil, voltou, voltou com mais força e gana, hoje estamos com uma economia debilitada, com emigração, desemprego, nível de vida a baixar, famílias individadas...é lamentável.

    Brijinhos

    By Blogger Maria Silva, at 1:14 da tarde  

  • Postei sobre isso e não estamos diferentes aqui. A diferença é que somos um país maior e mais pujante, mas a corrupção e os rombos governamentais, também correm na mesma proporção. Nesse ano teremos eleições presidenciais e justo quando descobrimos as maiores falcatruas com o desrespeito ao patrimônio público, as opções para elegermos o próximo dito cujo a nos dilapidar, está mesmo lamentável: ou votamos em um MOLUSCO, ou num seguidor da desgraça que é o OPUS DEI... Estamos literalmente entre a CRUZ e a ESPADA!!! Que destino mais triste!!! É por desgraças dessas, que o brasileira se atira na caipirinha e no samba... Só bebendo muito mesmo para esquecer que o mesmo partido que nos rouba, é o que nos jura fidelidade...

    Boa noite e muita sorte!!!
    ò,ó

    By Blogger Lâmina d'Água & Silêncio, at 12:02 da manhã  

  • Grande José Carlos! abraço.

    By Blogger lince, at 11:04 da tarde  

  • Era preciso que houvesse uma revolução nas mentalidades. O nosso país não se recuperou dos constrangimentos da ditadura e continua a chorar sem razão.

    By Blogger Fátima Silva, at 12:23 da manhã  

  • lembro-me dessas épocas e tb de vir de fora com livros metidos nas costas ou na barriga porque eram proibidos.... e discos , discos q se não podiam ouvir ...
    hoje "eles" não tem essa noção daquilo q não se podia fazer !!!

    Beijos

    By Blogger greentea, at 11:27 da manhã  

  • Esperemos que venha uma mudança, não está muito fácil a situação económica e social do país.

    By Blogger Maria Silva, at 9:42 da tarde  

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